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Sem sonhar

Era uma cidade distante, não para os padrões de hoje, mas certamente para os de seu tempo. Cento e trinta quilômetros da capital. Uma distância bem grande para quem morava no sítio. Seu pai a criou sozinho, essa é uma história até hoje não contada. Quem lhe ensinou a pentear os cabelos? Quem lhe cuidou das vaidades, dos ensinos que cada mulher deveria saber? Talvez sua irmã mais velha, talvez suas tias e primas, talvez a observação dos dias, das noites, do movimento do vento nas palmeiras. Era mesmo uma cidade distante, não para os padrões de antigamente, mas para os padrões de hoje. Culturas tão infantis, anseios, desejos, vontades pueris. Talvez casar-se, talvez concluir o segundo grau em uma escola da capital. Moça valente resolveu sair. Estudou na capital, tornou-se técnica em enfermagem. Se exerceu a profissão? Não sei, nunca vi. Era uma moça bonita, talvez pretendida por muitos, criada na serra, família ordeira, menina estudada e feliz. A moça conheceu o soldado e aventurou-se tão nova. Costume diferente, distante aos nossos padrões. Casou-se aos dezessete. Onze filhos criou. Quantos dias de mocidade, de alegrias, de sonhos realizados? Talvez poucos escondidos entre dívidas, impossibilidades, choros e doenças. Venceu. Tornou-se um mito para quem a conheceu. Pela bravura de criar o mais velho distante, nobre e forte general. Pela cultura que distribuiu a todos. Pela convivência pacífica-conflitante com dez rapazes diferentes e a mocinha... O que fazer com a mocinha que entre os dez homens lhe nasceu? Como ensinar-lhe a pentear-se? Como explicar os rapazes, os sonhos, as delicadezas, as coisas de mulher? Não bastassem suas vitórias, poucas foram as medalhas, muitas mesmo as batalhas. Naquela cidade distante no tempo e no espaço é que nasceu a mocinha. Muito linda naquela foto de menina. Naquela cidade pequena, pasmem, nasceu uma mulher especial: forte, endurecida pela vida, inteligente, culta, corajosa, que escondeu a menina. Senhoras e senhores procurem naquela cidade, ou mesmo em seus corações. Encontrar de novo a mocinha que nasceu naquele lugar. Em algum lugar ela está, sonhando, sofrendo, crescendo, aprendendo, esperando alguém para amar.