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Gentes estranhas

Lá em casa de vez em quando apareciam gentes estranhas. Uma vez foi uma família de alagoanos, nós implicávamos com o menino, da nossa idade, que não dizia "oito" e sim "oithio". Nem me lembro quando a Vânia, minha prima, foi lá na primeira vez. Nunca sabia de onde vinham nem para onde iam, de repente estava alguém dormindo em algum lugar lá em casa.

Como bom menino, não tinha muito direito de saber das coisas e logo me conformava com isso.

Um dia apareceu um homem, ele tinha muitos pelos na orelha e era um pouco mais alto que eu. Bem, eu tinha onze anos e ser mais alto que eu não seria nenhuma vantagem para um homem. Pouco mais de um metro e meio, veio dirigindo uma C-10, montado em almofadas, vinha quase em pé. Era o tio Gonzaga, irmão da mamãe.

Ficou lá em casa apenas o tempo de eu saber que tinha tios. Já em 82, perto de irmos para Fortaleza, Gonzaga apareceu de manhã. Mamãe me chamou e ao Normando: - acordem, vamos viajar. E lá fomos nós para Marabá.

O carro era um Fiat 147. As estradas de terra tinham morros inacreditáveis e um tráfego de caminhões assustador. Mas tio Gonzaga não se abalava. No banco de trás eu e Tom nos revezávamos chamando o Raul.

Paramos de noite em São Félix do Xingu, foi meu primeiro churrasco gaúcho, em uma churrascaria de madeira, bem caindo aos pedaços. Que delícia! Nunca vou esquecer o sabor e a maciez daquela carne.

Pela manhã outra cena especial, abrimos a porta da casa onde dormimos (será que era um hotel?) e não víamos nada à nossa frente, tudo se resumia a um branco denso e profundo. Uma neblina muito forte fechava qualquer visão. Atravessamos a rua a pé, e bem no meio dela um Cesna, aquele aviãozinho, estacionado no meio. Não dá prá esquecer um avião no meio da rua.

Seguimos viagem, e enquanto amanhecia víamos a núvem subindo e deixando pedaços de algodão nas copas das árvores. Atravessamos o Xingu, e as histórias de tio Gonzaga nos fascinavam. O homem não tinha raiz, nem casa, nem família. Vivia de lugar em lugar. Seu trabalho era ajudar pessoas: precisava entregar uma carta no Ceará? Gonzaga ia. Precisava fazer um serviço, lá estava ele. Mantinha-se com a metade de uma gleba no garimpo de Serra Pelada, que lhe rendia algum sustento. Vivia de fazer rolo.

Passávamos na frente dos sítios e Gonzaga reconhecia a origem de cada um apenas pelo que plantava e pelo jeito que cuidava: esse é maranhense! - Por que? - Só planta mandioca. - Esse é cearense! - Por que? - É muito preguiçoso. E quando duvidávamos, ele simplesmente parava, entrava, tomava café, perguntava pela família e saía satisfeito: - Não disse que era maranhense? - Mas tio, você conhecia aquela mulher? - Não, nunca vi - era a resposta.

Também nessa viagem comemos uma carne de sol bem especial. Parece que fica mais gostosa quando no meio da estrada. Anos depois soubemos que Tio Gonazaga morreu, foi matado. Morreu na estrada, em um assalto. Mas ainda nos impressiona saber um pouco daquele homem baixinho, da orelha peluda, que saiu de casa ainda jovem e resolveu ganhar o mundo, vivendo sem rumo, sem âncora, mostrando para nós que a felicidade não está no contra-cheque, nem em um escritório cheio de máscaras. Tio Gonzaga para mim é uma representação da liberdade, que matamos em uma estrada porque temos medo de sofrer.